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1. |
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um sabiá, na palmeira, longe
canta, canta pra ti
ele bem sabe a dor da saudade
e canta, canta pra ti
sabe o que é felicidade
sabe o que é dor de amor
sabe o que é dor de amor
coração, escuta, é tarde
o sabiá cantador
sabiá cantador
na madrugada, desarvorada
faço versos pra ti
minha toada não vale nada
se não vale pra ti
só me escuta o arvoredo
sob a luz do luar
sob a luz do luar
saberá guardar segredo
até você voltar
quando você voltar
abre o coração para a música
sou teu sabiá
sou o encanto de te esperar
vem pra me despertar
pra me desesperar
desesperar
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2. |
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tenho dó das estrelas
luzindo há tanto tempo
há tanto tempo...
tenho dó delas
não haverá um cansaço
das coisas,
de todas as coisas,
como das pernas ou de um braço?
um cansaço de existir,
de ser,
só de ser,
o ser triste brilhar ou sorrir...
não haverá, enfim,
para as coisas que são
não a morte, mas sim
uma outra espécie de fim,
ou uma grande razão –
qualquer coisa assim
como um perdão?
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3. |
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eu vi
tantos mares tantas margens
tantos céus tantas paisagens
eu vi
tanta escala e tanto cais
eu fiz
pelo avesso dos caminhos
o meu lar em tantos ninhos
eu quis
os meus pés nos areais
vi tantas manhãs
tão claras tão vãs
desejos sem fim
a sorrir e a chorar pra mim
e enfim
depois de tanta aventura
o meu peito me murmura
que há
tanta vida a vir
mais
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4. |
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se o homem ama por amar
e a mulher ama por amor
quem vai poder nos abraçar
compreender nossa dor?
somente a serpente
e a canção da vida
em que o homem é o verbo
e a mulher é substantiva
no olho de quem você se meça
no espelho e no coração
não há quem não se reconheça
nem há quem não se estranhe
somente a serpente
é a irmã da irmã
a serpente é a gente
pai e filha e mãe
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5. |
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EVA E ADÃO OU MARCHINHA DA FAMÍLIA
Ana Tatit, Zé Tatit, Zé Miguel Wisnik
adão e eva é a primeira invenção
mas dentro dela já havia eva e adão
parece nada, mas nessa inversão
uma virada alterou a situação
essa é a marchinha da família diferente
muito contente de juntar gente com gente
homem com homem, mulher com mulher
e essa ciranda, seja lá o que deus quiser
essa quadrilha seja o que a gente quiser
PRESENTE
Zé Miguel Wisnik
eu quero simplesmente
te dar um presebte
a rosa dos tempos
desabrocha
desabrocha
desabrocha novamente
eu quero simplesmente
a vida semente
a mente que vibra
vibra as fibras da cidade
que vibra novamente
eu quero simplesmente
você nesse instante
amante da vida
da vida amante
e o gozo do mundo
gozo sem fundo
gozamos durante
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6. |
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pendurado de banda
no vão da varanda
do prédio a rodar
não sei mais se é o mundo
que cai aos meus pés
ou de pernas pro ar
embebedado de você
tonto na beirada
da tentação de cair e voar
até me aninhar em você
mal parado num muro
sem prumo em que estudo
onde me equilibrar
entre o chão e o barraco
de estrelas que cai
no que foi nosso lar
abandonado por você
louco querendo mamar
do segredo da vida e gritar
até me agarrar em você
arrastado por dentro
ao meu próprio espetáculo
em tal patamar
pela mão da sereia
que vai se tornando
a sirene a soar
convidado de luxo
a deixar a ribalta de amar
pela escada de incêndio a baxar
até me assistir escapar você
muito embora indo embora
eu mesmo mentindo
devo argumentar:
sou a sobra do efeito
cascata de vodka
e desse luar
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7. |
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errei com você
errei errei errei errei errei
errei
não podia trocar
o lugar que é só teu
o cantar que é só teu
pelo cantar de mais ninguém
pela nossa amizade
nossa cumplicidade
o nosso bem
é claro que há
que se comemorar
tantas formas de ser
e de estar
com outro alguém
o lugar onde errei
onde o erro se deu
foi trocar o lugar
onde ninguém pode estar
senão você e eu
se você perdoar
depois que a dor passar
esse engano infeliz
que eu cometi assim
canta o samba que eu fiz
canta o samba pra ti
canta o samba por mim
sem cantar pra ninguém
dentro do coração
em silêncio e amém
em feitio de oração
e ainda uma vez
me doendo na voz
canta o samba pra ti
canta o samba por mim
canta o samba por nós
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8. |
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já expliquei ao gerente
já pedi muita calma
devo dente por dente
e pagarei com minha alma
já fui ao presidente
entornei mil cachaças
devo cento por cento
pago dando de graça
já traí as amantes
revirei muita bolsa
já devi diamantes
mas botei tudo
na tua conta
eu não tenho mais fundo
nem fundos
e vou com a lua
pro fundo do poço
mas a minha voz flutua acima
do meu pescoço
peço mais um domecq
e preencho esse cheque
com o verso de algum andrade:
se tempo é de fato dinheiro
quanto deve custar a ethernidade?
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9. |
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é a hora em que o sino toca,
mas aqui não há sinos;
há somente buzinas,
sirenes roucas, apitos
aflitos, pungentes, trágicos,
uivando escuro segredo;
desta hora tenho medo.
é a hora em que o pássaro volta,
mas de há muito não há pássaros;
só multidões compactas
escorrendo exaustas
como espesso óleo
que impregna o lajedo;
desta hora tenho medo.
é a hora do descanso,
mas o descanso vem tarde,
o corpo não pede sono,
depois de tanto rodar;
pede paz - morte - mergulho
no poço mais ermo e quedo;
desta hora tenho medo.
hora de delicadeza,
gasalho, sombra, silêncio.
haverá disso no mundo?
é antes a hora dos corvos,
bicando em mim, meu passado,
meu futuro, meu degredo;
desta hora, sim, tenho medo.
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10. |
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sílabas do meu canto
letras de fogo e ar
gritos do nosso espanto
vozes do som do mar
fazei-nos acalanto
fazei-nos descansar
piscinas de silêncio
hinos do sem lugar
uivos na noite imensa
sóis que inda vão vingar
dai-nos alguma bênção
dai-nos com que sonhar
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11. |
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vê se encontra um tempo
pra me encontrar sem contratempo
por algum tempo
o tempo dá voltas e curvas
o tempo tem revoltas absurdas
ele é e não é ao mesmo tempo
avenida das flores
e a ferida das dores
e só então
de sopetão
entro e me adentro no tempo e no vento
e abarco e embarco no barco de ísis e osíris
sou como a flecha do arco do arco do arco-íris
que despedaça as flores mais coloridas em mil fragmentos
que passa e de graça distribui amores de cristais totais sexuais celestiais
das feridas das queridas despedidas
de quem sentiu todos os momentos
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12. |
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sócrates brasileiro sampaio de souza vieira de oliveira
deu um pique filosófico ao nosso futebol
o sol caiu sobre a grama e se partiu
em cacos de cristais
as cores vestiram os nomes
e fez-se a luta entre os homens
até os apitos finais
a história não esquece que a bola se negou
mas chorou nosso gol
e vai se lembrar para sempre da beleza
que nada derrotou
mas quem será que diz quem venceu
no país em que o ouro se ganhou e perdeu?
(derreteu)
o futebol é a quadratura do circo
é o biscoito fino que fabrico
é o pão e o rito o gozo o grito o gol
salve aquele que desempenhou
e entre a anemia a esperança
a loteria e o leite das crianças
se jogou
com destino e elegância dançarino pensador
sócio da filosofia da cerveja e do suor
ao tocar de calcanhar o nosso fraco a nossa dor
viu um lance no vazio
herói civilizador
(o doutor)
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